domingo, 16 de agosto de 2020

A Dama e Eu


por Davi Simões

Sonhei com ela, novamente. Tratava-a como trato qualquer bela dama, cortesmente. Mas como Nosso Senhor não sou adúltero, possuo apenas uma esposa. Minh’alma é enamorada de uma linda moça, e chama-se Estrela do Mar. 

Nosso amor não foi de acabar, pois amor não finda. Se findasse era paixão; não fogo, cinza. Acabei como Tristão, morto. Ela, que não escolheu a morte, como Isolda, preferiu a sorte, vivendo no mundo. Chorei como Cristo no horto, lágrimas derramadas por um defunto. 

Aniquilo-me, violento-me, mas na memória e na imaginação há um amor indecente. Morri e morro novamente. No colo da Virgem o Salvador frágil toca seus lábios, como com os meus toco o Rosário diariamente. Ainda gemo e choro, mas agora por um segredo, que é só meu e não posso contar. 

Amor adúltero é o dela, que está com outro pensando em mim. Mas ajo como Galahad, por ter em mente um fim: uma certa dama ameaçou se matar, caso com ela não me deitasse. Disse que amo uma virgem castamente, então se matasse. Com a criatura mais imaculada vou esposar. 

Canto alegremente o meu novo amor em seu Ofício. Nenhuma palavra é o bastante para descrever como é difícil, descobrir que o amor ágape é mais desejável que o eros e o philos. O quão atrativa não deve ser a mulher, que para si conquista um desejo tão sublime ao mesmo tempo esponsal e maternal. O quão tremenda não é a Virgem de Vladimir e seu olhar! 

Ela tudo me deu, o que a anterior não pôde e não quis dar. Deu seu próprio filho. E mais que amar como cavaleiro, entendi que devo ser escravo e vassalo, mais que um escudeiro. Quero amar esta, que é a criatura mais perfeita, como amei um dia uma mulher feita. 

Beijo compulsivamente seu retrato, em tudo o que eu faço tenho ela comigo. Sou seu filho, irmão, mas também seu amigo. Um amor de morte. Forte, que desvaira o inimigo. Sua mensagem acalenta meu coração, me livra das desventuras, me impulsiona nas aventuras, me faz guerrear. 

Voltando para casa, sei que está a me esperar, pois não foi só por mim, mas por ela, que matei hereges. O sangue na minha espada não pode ser aquilatado com o da nossa Redenção. Vermes e moscas é o que são. 

Entre nós o final será feliz. Ela goza da alegria eterna, conhecendo e amando aquele que conhece e ama a si mesmo; aquele que, em três pessoas, criou a alma do Filho que ela deveria parir. Lá com ela reinarei vitorioso, coroado a sorrir.

sábado, 11 de julho de 2020

À Morte




por Florbela Espanca

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E, como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Madre Inquisição



por António Sardinha

Temos a África nas nossas veias.
O mais do nosso sangue é sangue preto.
Assim, carregadinhos de cadeias,
onde é que irá ficar-nos o esqueleto?

E eles mandam como as alcateias!
Há tantos, que debalde os acometo.
Logo ressurgem com as caras feias,
— não sei por que feitiço ou amuleto!

São moiros e ciganos quem governa.
Nunca será bastante a pena eterna
pr`a quem desfez a raça com torpeza!

Oh Santa Inquisição, acende as chamas!
E no fulgor terrível que derramas,
Vem acudir à Pátria Portuguesa!"

domingo, 25 de fevereiro de 2018

O Palácio da Ventura



por Antero de Quental

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Zênite



por Davi Simões

Nascer novamente
É função de cada homem
Conforme a capacidade mórbida
De amante do Espírito
O que requer vontade de morte

É quando então
Que ergue-se o sol
O zênite é o prenúncio diário
De todo inferno

O ídolo; que de tão puro
Não autoriza ser contemplado
Ele não quer ser visto
Mas vestido de luz
Fornece o milho e o pão

Abre os sentidos, homenzeco
Que serias mais
Que um alimento e um dejeto
Pois a função de um Deus
É sacralizar tudo

Somente a fogueira cura
Os homens-sem-Espírito
Somente o fogo
A alma gloriosa do sol

Melancolia



por Davi Simões

Noite abafada
Madrugada no meu pátrio Ceará
Precisamente no reduto jangadeiro
A uma centena de metros do mar

Contemplo o reflexo nas vidraças
De uma lua virginal, crescente
Sangue e suor
Vidro e concreto
Construíram arranha-céus imponentes

Trabalhadores e estudantes descansam
Das suas vidas vulgares e inúteis
Implodam as colmeias humanas!
O progresso pariu homens fúteis

Tal horário é o limbo
Nenhum homem na rua
Silêncio...
Carne nua
Minh’alma crua

Cântico do Irmão Sol



por São Francisco de Assis

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite.
Ele é belo e jovial
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que as sustentam em paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu senhor,
Pela irmã nossa, a morte corporal,
Da qual nenhum ser vivente pode escapar
Ai daqueles que morrerem em pecado mortal:
Bem-aventurados os que ela encontrar
Na tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.